Luanda - A projeção do general Fernando Garcia Miala para o centro da cena política angolana – e a hipótese de que possa vir a ser o próximo presidente – expõe tensões profundas e cálculos minuciosos no seio da elite dirigente. A sua trajetória, que vai de inimigo declarado do ex‑presidente José Eduardo dos Santos e do clã dos Santos a figura reabilitada e reintegrada no aparelho de Estado por João Lourenço, mostra como rivalidades pessoais, lealdades políticas e medos estratégicos se entrelaçam nas atuais disputas pelo poder em Angola.
Fonte: Club-k.net
Durante o longo governo de José Eduardo dos Santos, Miala foi afastado e tratado como ameaça. Como figura influente no aparelho de inteligência, era visto como alguém com peso político e conhecimento institucional suficientes para pôr em causa ou enfraquecer a rede de interesses ligada ao então presidente. Isso alimentou uma inimizade persistente: Miala deixou de ser apenas um crítico interno e passou a ser rotulado como inimigo declarado do presidente e do seu clã. Num sistema em que a lealdade pessoal ao chefe de Estado e ao seu círculo mais próximo se sobrepunha às regras institucionais, esse rótulo bastou para o excluir do núcleo de decisões e mantê‑lo, durante anos, afastado de qualquer cargo com poder efetivo.
A mudança de cenário dá‑se com a ascensão de João Lourenço à presidência. Ao contrário do seu antecessor, Lourenço procurou projetar‑se, pelo menos no plano discursivo, como reformador disposto a enfrentar as estruturas de corrupção e clientelismo associadas ao regime anterior. Nesse contexto, a reabilitação de Miala cumpriu vários objetivos. Em primeiro lugar, funcionou como sinal de rutura simbólica com a era de José Eduardo dos Santos: se até antigos “inimigos” do ex‑presidente voltavam a ter espaço, sugeria‑se que o ciclo de exclusão e perseguição seletiva poderia estar a ser revisto. Em segundo lugar, deu a Lourenço um aliado interno com legitimidade própria na confrontação com o clã dos Santos, que continua a deter redes de influência económica e política dentro e fora do país. Ao trazer Miala de volta ao Estado, Lourenço enfraqueceu a constelação de poderes associada a Dos Santos e, simultaneamente, reforçou a sua própria posição.
Este movimento assenta num cálculo político de lógica marcadamente pessoal: o inimigo do meu inimigo pode ser meu aliado. Para João Lourenço, projetar Miala como figura central – e eventualmente aceitá‑lo como sucessor – pode ser entendido como forma de garantir não apenas a continuidade da ofensiva contra o antigo sistema, mas também a sua própria segurança política. Um homem que foi perseguido sob José Eduardo dos Santos tem motivos pessoais e políticos para se manter hostil ao clã dos Santos. Do ponto de vista de Lourenço, isso faz de Miala uma espécie de seguro de que o passado não regressará tal como era. Ao mesmo tempo, Lourenço pode acreditar que, tendo sido o responsável pela sua “reabilitação”, conquistou a gratidão e a lealdade de Miala. Nessa leitura, o general “deve‑lhe” o regresso ao centro do poder e, por isso, não o atacaria no futuro.
Esse raciocínio, porém, é arriscado. A política angolana, como a de muitos regimes personalistas, é feita de alianças voláteis e reconfigurações constantes, mais do que de lealdades permanentes. Pressupor que Miala permanecerá fiel apenas porque recebeu um gesto de “justiça” e poder ignora a forma como o próprio exercício do poder altera pessoas, relações e prioridades. Caso chegue à presidência, Fernando Miala deixará de ser apenas aliado de João Lourenço para se tornar o eixo de uma nova constelação de interesses, expectativas e pressões. O objetivo central de um presidente no exercício de funções não é proteger o benfeitor, mas assegurar a sua sobrevivência política, a sua legitimidade e o seu lugar na história.
Um eventual presidente Miala herdaria um país marcado por desigualdades profundas, forte dependência do petróleo, instituições frágeis e um descrédito generalizado em relação ao MPLA e ao sistema político. Para construir legitimidade própria, poderá sentir‑se compelido a distanciar‑se, em certa medida, tanto do clã dos Santos como de João Lourenço. Esse distanciamento pode assumir várias formas: de uma narrativa de maior rigor e combate à corrupção a eventuais investigações seletivas sobre práticas do passado. Nestas circunstâncias, a “dívida” para com Lourenço tende a pesar menos do que a necessidade de consolidar a sua autoridade e responder às exigências dos novos aliados e da sociedade.
Ao mesmo tempo, o facto de Miala continuar a ser inimigo jurado do clã dos Santos oferece, no curto prazo, uma sensação de segurança a João Lourenço. Para grande parte da população, esse clã simboliza um longo período de autoritarismo, enriquecimento ilícito e concentração extrema de riqueza. Um líder que não esqueceu o que sofreu nesse período e que se posiciona frontalmente contra esse passado pode ser apresentado como garantia de que o velho sistema não voltará tal como era. Lourenço pode, assim, utilizá‑lo como evidência de continuidade na sua rutura com a era Dos Santos, mesmo que o modo de funcionamento do poder não se altere de forma estrutural.
Se Miala chegar à presidência, o seu mandato será moldado por uma tensão permanente entre lealdade e autonomia. Por um lado, dentro do MPLA e no atual círculo do poder, haverá a expectativa de que ele proteja os interesses políticos e económicos de quem o reintegrou no Estado. Por outro, para não ser percebido apenas como prolongamento de João Lourenço, poderá sentir necessidade de definir um rumo próprio, aprofundando o afastamento em relação ao clã dos Santos e, eventualmente, introduzindo novas regras no jogo interno do partido. O equilíbrio entre estas forças é que determinará se o seu governo irá apenas intensificar as disputas entre elites ou se abrirá algum espaço – ainda que limitado – para reformas institucionais.
A crença de que Miala não irá “atrás” de João Lourenço porque este lhe prestou um favor expressa uma visão personalista do poder que há décadas marca a política angolana: supõe‑se que as relações entre líderes são regidas sobretudo por dívidas pessoais, e não por instituições, leis e equilíbrios de poder. A experiência histórica de Angola – e de muitos outros países – mostra, contudo, que essas expectativas são frequentemente frustradas. Alianças de conveniência duram enquanto são úteis a ambas as partes; quando o contexto muda, a lealdade também pode mudar.
Se chegar à chefia do Estado, Fernando Garcia Miala tomará decisões menos orientadas pela gratidão pessoal e mais pelos imperativos do cargo, pelas pressões internas no MPLA, pelas expectativas populares e pelo xadrez internacional. A incógnita central é se usará esse poder para reproduzir, com novos protagonistas, a mesma lógica de concentração e disputa entre cliques, ou se tentará construir uma base de legitimidade mais ampla, ancorada em instituições mais fortes e maior transparência. É nessa encruzilhada que se joga uma parte decisiva do futuro político de Angola.