Luanda - A morte do Mano Jardo Muekalia obriga-nos a encarar uma fissura discreta, mas real, no espírito do tempo: como se, dentro da mesma casa política e militar, tivessem coexistido duas temperaturas morais, duas maneiras de imaginar o mundo e de o suportar. Há um Geist de geração que não se anuncia; revela-se depois, quando uma figura desaparece e, de súbito, percebemos o que ela ainda segurava em silêncio.
Fonte: Club-k.net
Ele pertenceu à ala mais cerebral da UNITA, aquela que, com paciência e vocabulário, foi dando forma à superestrutura do movimento, às justificações, às frases que procuram ser destino. E, no entanto, trazia um rasgo íntimo que não se resolve com propaganda: de um lado, a herança paterna, profundamente protestante, ética, correcta, exigente; do outro, a convivência diária com uma guerrilha que, em vários momentos, cultivou um marxismo de feição chinesa, lendo com reverência textos de Marx e de Lenine, e retirando daí um sentido de missão histórica. Não como mero funcionário de ideias, desses que polam frases para a vitrina e chamam doutrina ao que é apenas conveniência, mas como homem colocado no ponto exacto onde as contradições deixam de ser teoria e passam a ser biografia.
Essa tensão não era exclusivamente sua. Em 1976, a textura interna da UNITA começou a mudar, e a mudança foi brusca. Entrou uma nova leva de quadros vindos das cidades: alguns já com ensino secundário feito, outros poliglotas, quase todos atentos à forma como se apresentavam, à linguagem, aos sinais de mundo. E traziam consigo um hábito que não é apenas cultural, é espiritual: o protestantismo como disciplina de leitura e, ao mesmo tempo, como treino de suspeita.
A lógica das missões era simples e, por isso mesmo, perigosa: ler. Ler significava aceder à Escritura sem intermediários; significava poder interpretar, e, quando necessário, desconfiar de quem, à tua frente, pretende interpretar por ti. Deste treino nasce uma autonomia interior, uma teimosia moral que pode parecer individualismo, mas que, em contexto de guerra e de hierarquia, funciona como travão. Essa postura entrou em tensão com a cultura organizacional que se foi instalando no mato.
Porque, a certa altura, o movimento começou a inclinar-se para uma liturgia de obediência: culto da personalidade, centralidade absoluta do chefe, e a ideia, ideologicamente pesada, de um só pensamento e de um só líder. Para a elite protestante dentro da UNITA, isso não era apenas uma divergência táctica; era um problema de consciência. Muitos alinharam para sobreviver. O alinhamento, contudo, não apagava a dissonância; apenas a empurrava para dentro, onde ela roía.
Foi nesse atrito, acumulado e mal digerido, que a UNITA atravessou uma crise com os seus anciãos protestantes; e é nesse clima que se compreende a eliminação de figuras como Jonatão Chingunji, patriarca da família Chingunji, ligado à realeza do Bié, antigo preso político e homem de princípios duros, daqueles que não se guardam apenas para os discursos. A sua ética era pública e privada; e, sobretudo, recusava a idolatria. Num universo que começava a pedir devoção a uma pessoa e conformidade a uma fórmula, essa recusa tornou-se, por si só, uma acusação. E uma acusação, em certos momentos, paga-se caro.
Dentro da UNITA existiu, durante anos, um segmento escolarizado que via o MPLA como corrupto, inepto, burguês e reaccionário, e sonhava com uma elite de “príncipes” revolucionários, treinados na pureza do ethos, capazes de conduzir o país a uma espécie de nirvana comunista. Essa ala alimentava uma visão teleológica da história: a crença de que o tempo tem direcção, que a realidade caminha para um fim definitivo, e que o sofrimento presente é apenas a oficina desse futuro.
Mas havia também uma outra escola, menos barulhenta e, por isso mesmo, muitas vezes mais vulnerável. Uma escola verdadeiramente democrática, que acreditava na pluralidade como condição de sanidade nacional: vários partidos, várias visões, várias confissões religiosas; uma economia assente no mercado e na iniciativa, em vez de um aparelho centralizado que confunde Estado com destino; e, por baixo de tudo, direitos humanos e ética como piso obrigatório de qualquer programa governativo. Para os guardiões da ortodoxia, esta corrente era um desvio confortável, um perfume estrangeiro. Chamavam-lhe “liberal”, “burguesa”, “reaccionária”, como se a liberdade fosse um luxo e a decência uma traição.
O Mano Jardo, e outros do seu círculo, defendiam que era preciso preservar a infra-estrutura, segurar o nó deaa pé as peças materiais e humanas do movimento, para que o desembarque no porto do destino, se e quando chegasse, trouxesse consigo uma outra atmosfera. Uma atmosfera menos propícia ao comando vertical, mais inclinada à normalização. Acreditavam que, numa transição bem conduzida, as violências do passado seriam empurradas para o rodapé da história, tristes notas de rodapé, sem poder de se repetirem.
Muitos viviam, então, partidos ao meio. Havia uma lealdade profunda à tradição do movimento, ao partido, à memória dos que tinham sacrificado juventude, família e corpo; e havia, ao mesmo tempo, a imposição de uma liderança concentrada numa só figura, apresentada como necessidade absoluta. A justificação vinha embrulhada na gramática do cerco: a ameaça de uma superpotência e dos seus acólitos; o medo de que, se a insurreição falhasse, os vencedores fossem implacáveis, e que cada hesitação interna se transformasse em sentença.
Ao longo desse arco, até os democratas foram sendo empurrados para uma lógica de sobrevivência. Já não se tratava apenas de princípios. Tratava-se de manter vivo o movimento, de não deixar que a máquina se desfizesse por dentro. E havia ainda uma outra angústia, mais íntima e menos confessável: a sensação de que, se a discrepância entre as suas convicções e a cultura organizacional se tornasse total, eles não teriam para onde ir. Fora do partido, não havia abrigo. Dentro, havia custo. Entre um e outro, ficava a vida inteira.